Aconteceu neste final de semana, dias 22 e 23 de fevereiro, o primeiro módulo do XIII Curso de Antroposofia para Profissionais da Área da Saúde. Os alunos foram recebidos pela diretoria da ABMA-SP e pela Dra. Ana Paula I. Cury, representando a Sociedade Antroposófica do Brasil

Durante a apresentação e as boas vindas aos alunos, a Dra. Ana Paula Cury trouxe o texto abaixo:

 

Alocução de abertura do XIII Curso de Antroposofia para Profissionais da Área da Saúde
Caros amigos,

O que aqui nos congrega é a busca por uma nova arte de cuidar, já que estamos reunidos como médicos e terapeutas, enfim, cuidadores. Mas quais são as nossas raízes, como médicos e agentes de saúde? Quem eram os primeiros médicos? Pergunto isso, não como quem queira convidar a um retorno ao passado, mas a um revigorar das raízes, e, com ele, à seiva viva que faz crescer e pode iluminar nosso caminho. Não para venerar as cinzas de uma história ancestral, mas para transmitir sua chama.

Sabe-se que nos primórdios, o médico era também sacerdote e exercia este duplo ofício em templos, nos assim chamados centros de mistérios, lugares em que os seres humanos procuravam inspiração e orientação dos deuses. A Medicina formava parte de uma antiga sabedoria dos mistérios. Doença e cura tinham a ver, respectivamente, com a ameaça e a restauração da imagem humana que as pessoas reconheciam como originada dos deuses. Assim, a criação de elevados seres era complementada pelo trabalho dos curadores, por quem se tinha grande consideração.

Pouco se sabe dos mistérios aos quais os médicos da antiguidade deviam seu conhecimento. Trair seus segredos era ato passível de ser punido com a morte. Nos últimos séculos a arqueologia ofereceu-nos alguma informação. Mas devemos nosso conhecimento acerca dos mesmos principalmente à pesquisa científico-espiritual de Rudolf Steiner [Rudolf Steiner – filósofo austríaco (1861-1925) a quem devemos a fundamentação de um caminho de conhecimento da natureza do ser humano e do universo, que amplia o conhecimento obtido pelo método científico convencional, bem como a sua aplicação em praticamente todas as áreas da vida humana]. De qualquer modo, através dos séculos, até bem pouco tempo, ainda havia uma percepção desta relação outrora existente entre o sacerdócio e a medicina. Para ilustrá-la cito Dr. Hufeland, que na época de Goethe, apelava aos seus colegas dizendo:

Tenham sempre em mente quem vocês são e o que devem fazer. Vocês são sacerdotes de Deus, ordenados para guardar a sagrada chama da vida e administrar seus maiores dons, que são a saúde, a vitalidade, e as misteriosas forças de que Ele dotou a natureza para nosso benefício. Este é um elevado e sacro ofício. Não o procurem para sua glória ou proveito próprio, mas em honra de Deus e pelo bem de seus semelhantes. Tempo virá em que terão de prestar constas de suas ações.

E ele não via só os ideais envolvidos na prática médica, mas também os perigos potenciais:

Aqueles para quem a medicina não se tornar um sacerdócio, experimentarão este trabalho como a coisa mais deplorável, problemática e ingrata sobre a Terra, até mesmo como uma frivolidade, pois somente o que fazemos em nome do Amor é santificado e gratificante. Mas vejam só em que a medicina se tornou para muitos médicos em nosso tempo: nada mais que especulação; um meio de ganhar dinheiro ou obter reputação. Na melhor das hipóteses, um campo de pesquisa.

Voltando aos tempos antigos, houve, portanto, uma época em que a humanidade era guiada por líderes espirituais que estavam abertos à inspiração e direção de seres mais elevados. Estes que se converteram em guias de seus semelhantes, desenvolveram a capacidade para isso nos assim chamados locais de mistérios. Um longo e rigoroso aprendizado levava por fim à chamada iniciação – o coroamento de um processo que despertava gradual e progressivamente capacidades de percepção suprassensível, permitindo-lhes conhecer as diretrizes a partir das quais se devia realizar o esplendor de uma época cultural.

Rudolf Steiner descreve todos os mistérios pré-cristãos como sendo mistérios da sabedoria. Todos os conteúdos destes mistérios estavam direcionados no sentido de proporcionar ao discípulo um acesso à sabedoria oculta da qual surgira toda a Criação. A antiga iniciação estava orientada para o passado – ela buscava uma volta à fonte da qual fluiu a sabedoria inerente a toda a natureza e obra divina. E assim, recebendo o que emanava dos deuses como sabedoria, estes líderes podiam ordenar toda a vida social e cultural impulsionando seus semelhantes conforme o que cabia realizar para cumprir a meta daquele estágio evolutivo.

Hoje, já não é tempo de se confiar e deixar-se guiar por uma autoridade externa. O ponto de partida para o ser humano é sua capacidade intelectual altamente desenvolvida. O pensar claro, autônomo, em que o eu vivencia a si mesmo. Ele pode, em liberdade, tomar nas mãos o próprio desenvolvimento, formar seu próprio mundo social e até transformar a natureza. Nesta época o ser humano é convocado para o empreendedorismo, para a tomada de iniciativas, para assumir responsabilidade pessoal. Para a atividade como artista (que de modo criativo, forma algo novo). Essas mencionadas características têm em comum a ação, o colocar em ação a vontade própria.

Desse ponto de vista, é compreensível que Rudolf Steiner tenha falado sobre os novos mistérios como mistérios da vontade. Os antigos mistérios da sabedoria entraram em decadência e perderam sua força inspiradora no decorrer da evolução. O que antes era ainda revelação viva morreu na tradição e no dogmatismo. Se antes todas as áreas da vida possuíam uma orientação espiritual com uma qualidade que reintegrava o homem à sua origem, à sua essência, com o início da época moderna e a ruptura da consciência que passa a ser orientada para o mundo sensorial exterior, a orientação espiritual se perdeu. A cultura já não é mais inspirada pelos centros de mistérios, onde se abrigava a antiga espiritualidade; ela recebe seu conteúdo daquilo que as pessoas, por suas próprias forças, desenvolvem em termos de ideias. Em certo sentido, os centros de pesquisa das universidades assumiram a direção que outrora era dada pelos antigos mistérios. Eles indicam com sua ciência – e com a continuação desta: a técnica – a direção da sociedade.

Sem uma nova orientação para o espiritual, esse desenvolvimento nos conduziu a um materialismo cada vez maior. Rudolf Steiner indicou-nos caminhos para uma nova orientação rumo ao espiritual. Mas agora não mediante uma volta ao passado, e sim graças a uma vontade espiritual para o futuro.

Em toda parte onde respostas para perguntas desta época são procuradas com base na Antroposofia, essa vontade espiritual é despertada. E foi assim que surgiu a Medicina Antroposófica: podemos dizer que a Medicina Antroposófica, partindo dos conhecimentos científicos atuais, quer ampliar a visão que temos do ser humano, tornando-se uma arte de curar que renova a antiga sabedoria dos mistérios de maneira adequada aos nossos tempos.

Ela tem origem numa Cosmovisão Científico-Espiritual- a Antroposofia – cujo cultivo e disseminação é tarefa da Sociedade Antroposófica, a qual hoje represento. E é por isso que estou aqui: para que vocês possam sentir-se inseridos num contexto mais amplo, que inclui a origem e também, a finalidade deste movimento médico antroposófico.

Vocês se inscreveram para um curso de formação em medicina antroposófica. Uma concepção médica que pretende ser uma arte prática, não apenas uma ciência. E a arte pressupõe alma, sensibilidade, imaginação, a possibilidade de um diálogo entre o plano material da manifestação e um plano ideal, espiritual criador invisível. Que será que os moveu a esta escolha? O que os atraiu a isto? Alguma insatisfação perante os atuais paradigmas da ciência médica convencional? Um pressentimento de algo indefinível, imponderável, impossível de ser captado pelos estudos estatísticos ou abstratos e analíticos acerca do ser humano, e presente em muitas histórias de cura?

O fato é que nenhum de nós estaria aqui hoje se não fosse por Rudolf Steiner, que propôs ao mundo um caminho de conhecimento cientíico-espiritual que nos permite elevar à consciência o real significado do vir a ser humano. No início do século XX ele fundamentou as bases para este caminho de investigação espiritual que parte do sensorialmente perceptível e se eleva ao transcendente, ao suprassensível. Dos frutos de sua pesquisa, possibilitada por órgãos de percepção superior que jazem latentes em todos nós e que ele desenvolveu ao longo de anos, surgiram comunicações de um outro nível de realidade. E como elas foram transmitidas em conceitos passíveis de serem pensados, submetidos à razão e ao discernimento, qualquer um que com um juízo são e uma abertura sem preconceitos quisesse se acercar delas, poderia desvendar todo o horizonte que se descortina sobre o ser humano, a vida, a morte, a saúde, a doença, o sentido da existência, a evolução – de um modo que fala ao coração e responde a perguntas existenciais recorrentes que latejam mais ou menos conscientemente em todos nós. – Quem somos nós? De onde viemos? Para onde vamos?

Houve um momento histórico em que um certo número de pessoas que encontravam sentido e valor em tudo isso se reuniu a Steiner para o cultivo da vida interior através do esforço para compreender estes conteúdos e, partindo desta compreensão, tentar agir no mundo de acordo com ela. Para isso foi constituída a Sociedade Antroposófica – para ser uma espécie de instrumento ou canal para a disseminação da ciência espiritual. Esta era a sua tarefa: O que emana desta cosmovisão devia ser impresso sobre a cultura espiritual dos tempos modernos em nossa civilização, mas tinha primeiro de ser cultivado no nível de alguma organização social formal ou sociedade.

Após a primeira guerra mundial, a Europa estava mergulhada em caos, e havia um sentimento generalizado de que era preciso buscar um novo modo de pensar as coisas e agir no mundo, pois o modus vivendi de então conduzira a humanidade a terríveis catástrofes. E muitos dos que ansiavam por uma diretriz, uma inspiração fundamentada na realidade do espírito, procuraram em Rudolf Steiner o impulso para iniciar em seu campo de atuação prática algo mais humano e verdadeiramente efetivo. Foi assim que surgiu entre outras iniciativas inspiradas na Antroposofia, a Medicina Antroposófica em 1920.

Na imagem ideal que trago em mim, o movimento médico antroposófico é como um dos vários sistemas do grande organismo social antroposófico. Há neste organismo, além da Sociedade Antroposófica e das várias iniciativas antroposóficas como a medicina, a pedagogia, a arquitetura orgânica, a agricultura biodinâmica, etc., uma Escola Superior Livre de Ciência do Espírito. Ela deveria ser aquela Escola que nos leva ao autodesenvolvimento necessário para que nos tornemos verdadeiros pesquisadores espirituais, capazes de captar pelo pensar insights espirituais e trazer novos impulsos sanadores aos diversos campos da vida humana; respostas às grandes questões da atualidade.

Assim vejo este grande organismo como um ser trimembrado, no qual a Escola Superior com suas várias seções (campos de pesquisa) é tal como o cérebro que tem em si as áreas correspondentes aos diversos órgãos do corpo.

A Sociedade Antroposófica é como o meio, o coração e pulmão que devem fazer a ponte entre a cabeça (Escola Superior com suas seções) e os diversos órgãos que constituem o movimento antroposófico e mediante os quais, os impulsos hauridos pelo pensar intuitivo, são executados e expressos no mundo.

Ela deveria ser o ponto de encontro do humano geral, o sangue nas veias e artérias que em sua capilaridade permeiam tanto a cabeça quanto os membros e o metabolismo levando-lhes a vida antroposófica e dando aos outros dois condições de realizar a tarefa e o propósito que justifica sua existência.

Por isso, é muito importante que vocês, possíveis futuros médicos e terapeutas antroposóficos, possam também procurar a conexão com a seiva vital que poderá alimentar e sustentar sua prática, não se especializando unilateralmente, mas também cultivando o encontro com os conteúdos antroposóficos gerais e desse modo, sua própria humanidade, junto a outros seres humanos irmanados na mesma busca por conhecimento.

Steiner certa vez disse que a Antroposofia é um esforço para levar o impulso Crístico a todas as áreas da vida humana. E, por sua vez, Cristo disse aos seus discípulos: “Eu sou a videira, vós sois os ramos. Quem permanecer em mim e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer”.

Se pretendemos atuar no sentido da cura, precisamos buscar a relação com Aquele que é, Ele mesmo, o Curador e tornarmo-nos seus instrumentos dignos. Cultivar a genuína Antroposofia é uma forma adequada ao nosso tempo de fazer isso. Desejo a todos uma linda e rica jornada através das muitas estações e encontros que terão aqui!
Bom curso a todos!

Ana Paula I. Cury